Entenda as contribuições e os limites dessa modalidade, que não tem previsão legal no Brasil


Mayne Goes, Lívia Guilardi, Cíntia Mendonça, Marina Caixeta e Joziléia Daniza Kaingang: o primeiro mandato coletivo eleito em Florianópolis (SC) - Coletiva Bem Viver / Divulgação


Florianópolis (SC) é a única capital brasileira que só elegeu vereadores brancos em 2020, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Duas mulheres negras e uma indígena, no entanto, também estarão na Câmara a partir do ano que vem, elaborando e debatendo projetos para a cidade.

Elas integram um “mandato coletivo” do PSOL, que foi eleito com 1,6 mil votos e será encabeçado por uma mulher branca, Cíntia Mendonça.

Mandatos coletivos são o resultado de candidaturas que reúnem mais de uma pessoa sob o mesmo número, com a promessa de uma gestão horizontal e sem hierarquias.

A modalidade não tem previsão legal: o mandato é pessoal e intransferível, conforme a legislação eleitoral, e só o titular tem direito a voz e voto no plenário. Ou seja, os “coparlamentares” atuam nos bastidores, formulando coletivamente os posicionamentos que serão levados ao plenário.

“Não conseguiríamos ser eleitas se não fosse por uma candidatura coletiva. Agora, o sentimento é de responsabilidade, de honrar as mulheres negras que vieram antes de mim”, afirma a covereadora eleita em Florianópolis pela Coletiva Bem Viver, Mayne Goes. Ela analisa que um dos primeiros desafios será o reconhecimento junto ao próprio movimento negro.

“Uma parcela do movimento negro, que é ultra diverso na cidade, já declarou nas redes que nenhuma candidatura negra foi eleita em Florianópolis. Então, não reconhece a nossa presença nem a representatividade da Coletiva”, acrescenta Lívia Guilardi, a outra mulher negra que integra a chapa.

Além de Mayne e Lívia, o mandato é composto por Marina Caixeta e pela indígena Joziléia Daniza Kaingang.

Acúmulo

Antes de lançar a candidatura, o grupo elaborou um estatuto para definir, por exemplo, a dinâmica de trabalho e a remuneração – que será dividida igualmente entre as covereadoras.

“As plenárias realizadas durante a campanha trazem um embasamento e um acúmulo que é muito maior do que nós cinco. E a gente já prevê novos encontros para planejamento estratégico do mandato”, ressalta Lívia.

“Muita gente votou na proposta de um mandato coletivo, e precisamos garantir isso. Mas algumas coisas não temos como mudar. Quem assina é a Cíntia”, reconhece.

Formalmente, o mandato pertence ao partido, de acordo com a Lei 9.096 de 1995. Ou seja, se o titular renuncia ao cargo, quem assume é o primeiro suplente, e não um coparlamentar.

Frescor

Os mandatos coletivos costumam reunir pessoas que não se veem representadas no sistema político tradicional, composto majoritariamente por homens brancos. Dividir as despesas e somar os esforços de campanha é uma escolha cada vez mais recorrente por aqueles que desejam romper com essa hegemonia.

Nos últimos oito anos, o número de candidaturas coletivas no Brasil saltou de três para 257. Destas, pelo menos 17 foram eleitas no pleito municipal de 2020 – não há um cálculo oficial do TSE, já que a modalidade não é reconhecida oficialmente.

Para a cientista política Rosemary Segurado, a modalidade traz “frescor” e “oxigena” as casas legislativas, escancarando a necessidade de reformas no sistema político.

“A institucionalidade só vai mudar se os próprios mandatos fizerem uma pressão para transformação dessas leis”, analisa.

“Estou falando de uma reforma política. Eu sei que eles [mandatos coletivos] têm suas demandas específicas, mas gostaria que eles colocassem esse elemento na equação, para que tenhamos um parlamento que, institucionalmente, permita isso.”

Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 379, da deputada Renata Abreu (Pode-SP), que prevê regulamentação dos mandatos coletivos, está parada na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados desde 2017.

Maturidade

A cientista política Silvana Krause, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que é preciso maturidade para enxergar as contribuições e os limites dos mandatos coletivos, para além da “euforia” que essa novidade pode provocar.

“O próprio termo ‘mandato coletivo’ está equivocado, porque não podemos dizer que os demais mandatos não são coletivos. O que se propõe é uma gestão coletiva de um mandato”, pondera.

Uma das preocupações é que essa modalidade agrave o processo de fragilização dos partidos políticos no Brasil. “É um desafio, de todos os lados. Tanto do ponto de vista de como o partido vai ‘controlar’ essas candidaturas, tornando-as coesas a uma direção, quanto a definição de como se regulamenta a prestação de contas”, exemplifica.

Para além dos partidos, Krause acrescenta que a modalidade exigirá outras adaptações.

“Há insegurança jurídica no sentido do controle, no caso de um racha dentro do que se está chamando de ‘mandato coletivo’. O funcionamento interno do Poder Legislativo também precisa ser regulamentado”, afirma a cientista política.

“Além da própria entrada na competição, com vários nomes em uma candidatura. Isso não existe na legislação eleitoral”, completa.

Horizontes

Rosemary Segurado estudou a candidatura da Bancada Ativista, eleita para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) em 2018. Ela lembra que uma das codeputadas eleitas, Erika Hilton (PSOL), deixou o mandato para lançar uma candidatura “avulsa” este ano, e será vereadora em São Paulo (SP) a partir de 2021.

“As pautas da Bancada Ativista eram muito diversas dentro de um único mandato. E o maior desafio é esse: conjugar essas várias visões, sem invisibilizar o que uma das pessoas que compõem o mandato propõe”, analisa.

“Muitas vezes, isso pode gerar conflitos, que precisarão ser sabiamente administrados.”

Diferentemente de Erika, as mulheres negras que compõem o mandato do PSOL em Florianópolis não se veem disputando eleições em candidaturas “avulsas”. Na interpretação delas, é a legislação que precisa se adaptar a essa nova realidade, e não os mandatos coletivos que devem se encaixar nas normas vigentes.

“A gente quer que todas estejamos no plenário e vamos nos articular, abrindo um diálogo na Câmara e com outros vereadores para que isso seja possível”, explica Mayne. “Não acreditamos em nenhum tipo de hierarquia ou personificação. Só nos imaginamos fazendo política na coletividade.”

A escolha de Cíntia Mendonça como titular do mandato, segundo elas, respeitou critérios de tempo de filiação ao partido e de experiência na militância.

“É uma necessidade do próprio partido fazer articulações para que a PEC avance, saia da CCJ e vá para o plenário [da Câmara dos Deputados], para conseguirmos regulamentar. Mais de 200 candidaturas coletivas em um pleito é uma sinalização de que esse modelo é importante”, finaliza Lívia.