Projeto de lei propõe reestruturar o programa impondo uma poupança forçada ao beneficiário – depositada, claro, nos bancos – e que só pode ser sacada caso sua renda caia abaixo de um limite. É a ‘Miséria S.A.’



Isabela Prado Callegari e Queren H. B. Rodrigues, Outras Palavras

Algo passou relativamente despercebido na repercussão daquela que ficou conhecida como a “carta dos 500” ou o “manifesto dos banqueiros” (1): as três linhas de defesa explícita do chamado Programa de Responsabilidade Social, que busca extinguir Abono Salarial, Salário Família e Seguro Defeso (para pescadores), com a justificativa de que eles seriam incorporados ao Benefício de Renda Mínima, programa que seria, por sua vez, uma reformulação do Bolsa Família, e que impõe uma poupança forçada aos seus beneficiários.

A ideia está estruturada no Projeto de Lei (PL) 5343/20 (2), que, caso aprovado, necessitará de outra mudança constitucional (algo que já vem se tornando recorrente) visando à extinção dos benefícios atualmente existentes.

O PL, apresentado por Tasso Jereissati (PSDB) em dezembro do ano passado, corre em tramitação no Senado sem alarde e foi elaborado por mais um think tank autodenominado independente e apartidário (3), o Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP) (4), cujos diretores e conselheiros são todos reconhecidos membros do mercado financeiro.

Um dos autores do projeto é Marcos Mendes, idealizador e defensor cotidiano do Teto de Gastos (EC 95) (5), que vem se empenhando em sustentar no debate público o argumento falso de que o Teto não retirou recursos da saúde (6).

O alvo do PL 5343 são as mesmas pessoas afetadas pela nefasta reforma da Previdência: os que ganham até dois salários mínimos, que têm uma mínima proteção garantida pelo mercado de trabalho formal, e que seriam supostamente privilegiados na estrutura de renda e emprego brasileira. Alega-se que retirar benefícios destes e direcionar, por meio de programas assistenciais, para os que estão abaixo, reduziria a desigualdade por “aumento de eficiência” (7).

Esse tipo de construção neoliberal é o que Virginia Fontes chama de Pobretologia (8), muito incentivada, inclusive, pelo Banco Mundial. Para que fique de fora do debate a luta de classes, o questionamento acerca da existência de bilionários e a produção cotidiana das desigualdades, falemos de metas, eficiência e gestão da pobreza. Ninguém há de notar que os mesmos que defendem a concentração de capitais, a garantia das taxas de lucro, a perda de direitos e a pauperização generalizada, são os que estão propondo manejar quem sobe ou quem desce em linhas quantitativas de miséria.

Modelos econométricos são muito úteis ao objetivo de envernizar projetos políticos com aritmética e apresentá-los como simples melhorias de gestão, livres de valores ideológicos e interesses de classe. O estudo do CDPP alardeia uma redução de desigualdade que seria conseguida apenas remanejando recursos, e as manchetes jornalísticas anunciam que o projeto traz metas de redução de pobreza.

O que não se diz é que o projeto traz em si uma nova PEC emergencial (EC 109), que ele limita os gastos efetivos do Benefício de Renda Mínima ao orçamento disponível a cada ano, e que parte do benefício que hoje é transferido diretamente às famílias seria direcionado a uma poupança forçada, que ficaria com os bancos.

O primeiro ponto é que, a pretexto de reduzir a pobreza, o PL carrega em si a possibilidade de ativação dos chamados “gatilhos fiscais”, explicitando que, enquanto não forem atingidas as tais metas de redução da pobreza, o governo é obrigado a congelar uma série de gastos, incluindo salários. Por óbvio, o projeto não diz que tais medidas de austeridade já vêm impedindo a consecução de direitos fundamentais e a prestação de serviços à população.

O congelamento de gastos representa o objetivo real de todas essas amarrações fiscais, de forma que a ânsia em finalizar o que a Lei do Teto começou e possibilitar a ativação dos “gatilhos” era tanta, que já conseguiram garantir que ocorresse por meio da Emenda Constitucional Emergencial, aprovada recentemente.

No entanto, de acordo com o projeto em questão, grande parte dos congelamentos que a EC 109 impõem vão valer também caso as “metas de redução de pobreza” não forem atingidas. Ou seja, é uma nova EC emergencial condicionada às regras do novo Bolsa Família.

Além de adicionar possibilidades de congelamento de outros gastos, a tendência é que os próprios benefícios do programa sejam inferiores ao que o projeto declara. Isso porque o PL torna legítimo algo que já vem acontecendo à margem da lei, de forma perversa, desde a aprovação do Teto de Gastos: a negação de benefícios e a formação de uma fila de milhões à sua espera (9), para cumprir uma limitação fiscal autoimposta e absurda (10).

Se atualmente os benefícios do Bolsa Família e da Previdência vêm sendo atrasados em prol da iníqua manutenção das regras fiscais, com esse projeto o Poder Executivo poderá, unilateralmente, decidir o valor do benefício, a cada ano, de acordo com o que o Teto de Gastos permitir. Diz o Art. 3º do Projeto de Lei (11):

§ 5º Para compatibilizar a quantidade e o valor dos benefícios de que trata este artigo com a dotação orçamentária anual, estabelecida nos termos do § 2º do art. 14, é facultado ao Poder Executivo alterar, para cada exercício:

I – o valor de referência per capita de que trata o inciso I do caput;

II – os descontos percentuais de que tratam as alíneas a e b do inciso II do caput.

Ou seja, nem a referida maquiagem de indicadores de desigualdade está garantida, pois os benefícios estarão condicionados às regras fiscais, impostas à sociedade pelos mesmos que defendem esse novo desmonte de políticas públicas. Assim, se aprovado o projeto, não é necessário grande exercício de futurologia para adivinhar o que acontecerá.

As tais metas de diminuição de pobreza não serão atingidas, devido à limitação de benefícios estabelecida pelo Teto e pelo próprio projeto, e o governo, na prestação de contas que o PL estabelece, dirá que o gasto público em outras áreas está impedindo a consecução das tais metas. Assim, mais uma vez se estabelece a falsa dicotomia entre parcelas do orçamento público, tal como foi feito para a aprovação do auxílio emergencial. A chantagem permanente é de fato uma das grandes funções da “austeridade”.

O PL segue, lamentando que tenhamos tantos “compatriotas padecendo na pobreza extrema”, mas ressalta que infelizmente não podemos resolver isso simplesmente gastando:

“… a fragilidade fiscal do País é inegável e limita substancialmente a potência dos instrumentos de que dispõe o Estado brasileiro para alterar a baixa dinâmica econômica, de um lado, e aportar recursos em programas já existentes e outros necessários à mitigação da pobreza no Brasil” (PL 5343/20, p. 23). (12)

Não há termos eufemísticos para responder a isso: é simplesmente mentira dizer que não há dinheiro para atender as demandas populares. O dinheiro moderno não tem lastro real e a emissão de moeda só gera inflação se há incapacidade produtiva, o que, por sua vez, também depende fundamentalmente de planejamento governamental, políticas de abastecimento interno, industrialização e investimento público.

Assim, a pandemia vem desnudando as falácias do argumento que sugere que a própria democracia seria inflacionária (13) e, portanto, impossível de ser efetivada. Bem como o momento presente vem mostrando que negar dinheiro ao atendimento de direitos é nada mais que uma opção política (14).

No Brasil, esse tipo de trato com o orçamento, que impõe de forma autocrática limitações financeiras gerais e coloca a população em disputa pela efetivação de direitos, foi inicialmente ensaiado com a Lei de Responsabilidade Fiscal e com a Regra de Ouro (art. 167, III da CF), e vem sofrendo uma escalada íngreme e abrupta desde a Lei do Teto, que impulsionou a Reforma da Previdência, e finalmente, com a EC Emergencial, que endureceu ainda mais a limitação de longo prazo. Agora, o projeto em questão se alicerça nas mudanças constitucionais já aprovadas para exercer mais chantagem orçamentária frente à fome e a miséria.

O PL se coloca abertamente ao lado do terrorismo fiscal, que embora não tenha base nenhuma na realidade, é uma posição ideológica hegemônica na grande mídia e no discurso da ortodoxia econômica, ameaçando cotidianamente a população com o argumento perverso e ao mesmo tempo paternalista de que o atendimento de direitos fundamentais por meio de aumento dos gastos públicos e dívida seria pior para a própria população mais pobre:

A pandemia do coronavírus e o fim do auxílio emergencial agravam uma situação que será intolerável em 2021. Ao mesmo tempo, a elevada dívida pública é um risco para as famílias mais pobres, ameaçando-as com as consequências do baixo crescimento econômico e a inflação” (PL 5343/20, p. 41).

Finalmente, o terceiro ponto do projeto é definitivamente o seu objetivo central: uma reestruturação do Bolsa Família, que impõe uma poupança forçada ao beneficiário. Estabelece-se um limite de R$156 de renda per capita acima do qual, em vez de receber o benefício de imediato, o governo depositaria um percentual da renda individual em uma poupança (Poupança Seguro Família), que só poderá ser sacada pelo beneficiário caso sua renda caia abaixo do referido limite, ou nos casos de morte dos provedores de renda, calamidades, desastres e período de defeso (para pescadores). A justificativa para tamanha falta de liberdade imposta pelos liberais aos mais pobres é a de que R$156 seria grande prova de que há um contingente de pessoas que não sofre de forma estrutural, mas apenas com vulnerabilidades conjunturais que os colocam abaixo dessa linha.

“…há um grande contingente de famílias que, em condições normais, é capaz de gerar renda e se manter acima da linha de pobreza. Porém, essas famílias são muito vulneráveis a choques que interrompam as suas atividades, seja por uma pandemia, seja por doença dos seus trabalhadores ou uma recessão. A forma que se mostra mais adequada para atender essas famílias não é por meio de transferência de renda em caráter regular, mas sim pela instituição de uma espécie de seguro que suplemente sua renda nos momentos de necessidade, quando esta se reduz.

Trata-se de situação distinta daquela vivida pelas famílias em pobreza extrema e estrutural que, mesmo trabalhando, não são capazes de gerar rendimentos superiores às linhas de pobreza estabelecidas. Para essas, o instrumento mais adequado é, efetivamente, a transferência regular de renda, nos moldes do Programa Bolsa Família” (PL 5343/20, p. 24).

De acordo com o projeto, o saldo da poupança poderá ser usado como garantia para operações de microcrédito, podendo ser apropriado pela instituição financeira credora, caso a parcela de crédito tenha atraso de 90 dias. É realmente um sonho para o credor, um fluxo direto de dinheiro do governo para a instituição financeira, que pode impor os juros que quiser, e que recebe, ao fim e ao cabo, a poupança do beneficiário mais as infindáveis parcelas que este irá se esforçar para pagar.

O PL estabelece ainda uma outra poupança forçada, na qual o governo depositará R$20 mensais por estudante, que só poderá ser resgatada pelo beneficiário quando este concluir o ensino médio (15). De acordo com os formuladores do programa, tal incentivo monetário e meritocrático auxiliaria no combate à evasão escolar porque, na opinião dos autores, a população pobre desconhece os altos retornos econômicos do Ensino Médio e Superior, então o papel dos economistas é elucidá-la de forma didática:

Os retornos econômicos do Ensino Médio e do Ensino Superior, apesar de altos, são largamente subestimados pelos jovens e suas famílias, sendo um dos fatores que pode explicar os altos índices de evasão escolar na transição do Ensino Fundamental para o Médio (…) Por isso propomos a instituição de poupança a que terá direito todo estudante regularmente matriculado na rede de ensino que seja membro de família habilitada a receber o BRM, de maneira a incentivar a conclusão do ensino médio (PL 5343/20, p. 27).

Ambas as poupanças poderão ser alocadas em qualquer instituição financeira escolhida pelo beneficiário, o que aumentará o montante disponível nos bancos, consequentemente, aumentando o poder de criação de moeda bancária e lucro. Os elaboradores do projeto são de fato muito refinados, pois conseguiram resolver, para os bancos, o problema fundamental dos benefícios assistenciais, explicitado com o auxílio emergencial: a maior parte não fica nos bancos, pois as pessoas sacam dinheiro físico e gastam em pouco tempo, não mantendo depósitos (16).

Ou seja, a preocupação com nossos compatriotas padecendo na pobreza levou os economistas a equacionarem um fluxo direto do governo para os bancos, por meio de poupança forçada. A estimativa é de, em média, R$ 39 mensais na Poupança Seguro Família, abrangendo cerca de 12,5 milhões de famílias, e de R$ 20 mensais por estudante até o fim do Ensino Médio, para cerca de 6,7 milhões de famílias (17). Com esses números fica mais fácil de entender o interesse do mercado financeiro em manter um think tank para a elaboração de políticas públicas.

Por fim, é sempre bom reiterar que a ideologia da “austeridade” cumpre diversas funções e nenhuma delas se relaciona à alegada preocupação com déficits ou dívida. Todas, porém, objetivam a restrição e a descaracterização do papel do Estado e o acúmulo de capital.

Como fica explícito com as mudanças constitucionais e reformas recentes, os projetos de austeridade são funcionais à acumulação por diversas vias: (i) a focalização de políticas públicas em detrimento de políticas universais, (ii) a cisão da classe trabalhadora (formais versus informais, setor privado versus setor público), (iii) a depreciação do setor público e dos servidores, (iv) a chantagem permanente para a liberação de verbas, (v) a pauperização da classe trabalhadora, que fica totalmente vulnerável e impelida a aceitar piores salários e piores condições de trabalho, (vi) a oferta privada de serviços anteriormente públicos e (vii) a alienação de setores estratégicos e patrimônio público ao setor privado.

A pandemia é mais uma vez oportunamente utilizada para impulsionar “reformas” e projetos neoliberais que estavam na gaveta. O PL adiciona refinamento aos modos clássicos de acumulação por meio da austeridade, conseguindo unir em uma só arquitetura os objetivos aparentemente antagônicos de restringir gastos públicos, institucionalizando a chantagem dentro do orçamento, e garantir uma reserva pública para o setor financeiro privado.

Por sua vez, aqueles que figuram como beneficiários no texto do projeto, pessoas em situação de pobreza e de extrema pobreza, continuarão subindo e descendo alguns reais em linhas quantitativas, a depender da conjuntura e da intensificação da própria austeridade. Se por um lado, a pandemia mostra a verdade sobre o gasto público, ela também mostra que a verdade não importa por si só, pois as forças políticas determinam o que pode ser aceito à margem dela. Por enquanto, infelizmente, ainda é fácil dizer que não há dinheiro para todos e fazer da miséria um grande negócio.