Deputada diz que Daniel Silveira lhe confessou que “queria ser outra pessoa”, e que tem “irmão e amigos” homossexuais. “Fiquei muito impactada com a conversa. Eu perguntei por que ele não se retratava e mostrava a sua verdadeira posição. Ele disse que não podia fazer isso, seu eleitorado não o perdoaria”



 Áurea Carolina*

Um deputado bolsonarista me disse, certa vez, que se arrepende de uma cena de violência que protagonizou. Emendou que estava cansado da polarização política, que queria ser outra pessoa, e que até tem um irmão e amigos homossexuais.

Eu perguntei, então, porque ele não se retratava publicamente e mostrava a sua verdadeira posição, mudando desde já. Ele disse que não podia fazer isso, seu eleitorado não o perdoaria. Entorpecido, recorria à autojustificação covarde que alimenta o círculo vicioso da violência.

Contei esse episódio num texto que escrevi no ano passado. Hoje posso dizer que eu falava de Daniel Silveira e da sua exibição junto com os brutamontes que destruíram a placa de Marielle Franco. O texto foi publicado no NexoJornal, na íntegra abaixo.

Para não ser covarde: a luta antirracista e pela democracia, não importa se no sistema político ou nas relações de intimidade, a omissão e a conivência de quem legitima uma violência flagrante são provas da sua inconfessável covardia

Quando tive essa conversa com Daniel, fiquei muito impactada com a consciência que ele tinha dos seus atos e compreendi que a covardia é uma conduta que sustenta o bolsonarismo. Vendo ontem sua patética defesa, com a repetição do discurso arrependido, o padrão foi confirmado.

Quando convém, fascistas amenizam o tom, escolhem bem as palavras, tentam se passar por cordiais e razoáveis. Não são agentes passionais. Calculam seus movimentos. É importante lembrar disso, pq o bolsonarismo é um projeto racional que sempre passa pela manipulação dos afetos.

Ah, o texto é de 2019*

Leia o texto na íntegra:

Na terça-feira (19), véspera do Dia da Consciência Negra, no momento da inauguração de uma exposição em homenagem à resistência negra dentro da Câmara dos Deputados, o deputado Coronel Tadeu (PSL/SP) arrancou à força e quebrou um dos painéis que estavam ali expostos. Ilustrado com uma charge que retrata uma cena de violência policial contra um jovem negro, de autoria do cartunista Carlos Latuff, o painel trazia informações sobre o genocídio da população negra no Brasil. Por não aceitar a crítica expressa na imagem, o deputado se sentiu no direito de censurar a obra e depredar uma exposição oficial.

A sucessão dos fatos, com uma forte reação de parlamentares negros e progressistas e ampla repercussão midiática, garantiu, um dia depois, a restituição do painel original à exposição. O remendo ficou à mostra para que o episódio de truculência racista e fascista não seja esquecido. O agressor foi denunciado no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados e na Procuradoria-Geral da República. Que a sua devida responsabilização seja decidida de maneira exemplar pelas instituições.

Longe de ser pontual, esse acontecimento evidencia a intensificação da violência que tem se alastrado pela sociedade brasileira. Escorre ódio em incontáveis situações. Agressões racistas, misóginas e LGBTIfóbicas se somam à perseguição política contra movimentos sociais, artistas, professores, estudantes e quem mais ousar questionar a tirania. Convivemos com um noticiário de estupros, feminicídios, execuções sumárias, homicídios de crianças em operações policiais. Assassinatos de indígenas, lideranças populares e defensores de direitos humanos já se tornaram rotina.

Tem muitas coisas que explicam essa realidade, mas me chama a atenção o quanto a covardia é um tipo recorrente de comportamento para concretizar a disposição violenta. A covardia se impõe no lugar do diálogo e da busca de mediação para os conflitos. É preciso usar a força bruta, ainda que por meio de outra pessoa, para fazer prevalecer uma vontade que não pode resistir a princípios e argumentos democráticos. Diante do pavor de perder, o covarde se dá a permissão de violar o outro que o contraria. A covardia também é escudo para a ganância e a vaidade.

Mesmo arrependidas depois de atitudes violentas, pessoas covardes terão dificuldade de se retratar e mudar o seu padrão emocional. Um deputado bolsonarista me disse, recentemente, que se arrepende de uma cena de violência que protagonizou. Ele alegou que está cansado da polarização política, que ano que vem quer ser outra pessoa, e lançou a frase clássica de que até tem um irmão e amigos homossexuais. Eu lhe perguntei, então, por que ele não se retrata publicamente e mostra a sua verdadeira posição, mudando desde já. Ele respondeu que não pode fazer isso, seu eleitorado não o perdoaria. Está entorpecido, refém de uma autojustificação covarde que alimenta o círculo vicioso da violência.

Outro colega bolsonarista tentou me convencer de que os movimentos sociais exploram a vitimização das pessoas para tirar vantagem na competição ideológica. Ele falava do movimento negro, em especial, com muito ressentimento. Em certo momento, eu ponderei que os identitarismos são problemáticos quando essencializam relações complexas e são usados como um recurso desonesto de afirmação de qualquer luta social. No entanto, eu dizia, isso não invalida a experiência concreta de opressão racial sofrida pela população negra, por exemplo, que é a razão de ser das lutas antirracistas. Mas ele acredita que as lutas criam uma divisão na sociedade e não ajudam em nada. Para ele, a charge que foi arrancada da exposição representa um ataque absoluto à polícia, por isso ele não condena a atitude do Coronel Tadeu. Por mais que eu argumentasse que a charge denuncia uma realidade comprovada empiricamente, e que isso de forma nenhuma é uma generalização para todos os policiais, não teve escuta.

Não importa se no sistema político ou nas relações de intimidade, a omissão e a conivência de quem legitima uma violência flagrante são provas da sua inconfessável covardia. Ainda que não se pratique a violência diretamente, só o fato de não repudiá-la é mau sinal. O resultado coletivo é a normalização da violência como método de solução para os problemas. Basta silenciar, “neutralizar” o outro que encarna o problema, seja uma pessoa ou um grupo social. O simples elogio à violência é uma forma eficaz de propagá-la. Nessa lógica, nada mais normal e desejável do que a eliminação de um inimigo.

Custa muito construir mediações sinceras e amorosas para os conflitos, ainda mais em uma conjuntura de acirramento da violência como capital político para grupos de ódio e conservadores. A interdição ao debate é útil para a política da morte e para o projeto de destruição da democracia. Apesar de tudo, a batalha não é inglória. É preciso exercitar a pedagogia do encontro, mesmo quando ele parece impossível. Contra a miséria da covardia, havemos de ter a coragem de sustentar a democracia como um valor inabalável.